top of page

Princípio da Proporcionalidade em obras: Equilíbrio entre legalidade e razão

  • Foto do escritor: Ana Carolina Santos
    Ana Carolina Santos
  • 15 de out.
  • 9 min de leitura

Quando falamos em fiscalização urbanística e em medidas para repor a legalidade em obras irregulares, surge frequentemente uma questão fundamental: até onde pode a administração pública ir na exigência de cumprimento das normas? Pode uma Câmara Municipal ordenar a demolição de uma construção irregular sem ponderar outras soluções menos gravosas? É neste contexto que o princípio da proporcionalidade assume um papel central no direito do urbanismo em Portugal, funcionando como travão ao exercício arbitrário do poder e garantia de equilíbrio entre o interesse público e os direitos dos particulares.

Neste post, exploramos de forma clara e objetiva o que é o princípio da proporcionalidade, como se aplica às obras de edificação, qual o seu enquadramento legal no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) e que consequências práticas tem para proprietários, técnicos e administração pública.


Anexo após legalização camarária aprovada
Anexo após legalização camarária aprovada

O que é o Princípio da Proporcionalidade?


O princípio da proporcionalidade é um princípio geral de direito administrativo que vincula toda a atividade da administração pública. Está consagrado no artigo 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que os órgãos e agentes administrativos "estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar (…) com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé".​​

No domínio específico do urbanismo e da edificação, o princípio da proporcionalidade impõe que as medidas adotadas pela administração para tutelar a legalidade urbanística sejam adequadas, necessárias e proporcionais aos objetivos que visam prosseguir.​​

Em termos simples, significa que a Câmara Municipal não pode "usar um canhão para matar uma mosca". Se existir uma medida menos gravosa que permita repor a legalidade, essa deve ser privilegiada.



O Princípio da Proporcionalidade no RJUE


O Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, consagra expressamente o princípio da proporcionalidade no âmbito das medidas de tutela e reposição da legalidade urbanística.



Artigo 102.º do RJUE: Reposição da Legalidade Urbanística


O artigo 102.º do RJUE estabelece que, quando sejam realizadas operações urbanísticas ilegais, os órgãos administrativos competentes "estão obrigados a adotar as medidas adequadas de tutela e restauração da legalidade urbanística".​​

Situações que exigem intervenção:

  • Obras realizadas sem os necessários atos administrativos de controlo prévio (sem licença ou comunicação prévia)

  • Obras executadas em desconformidade com a licença ou comunicação prévia

  • Obras ao abrigo de ato administrativo revogado ou declarado nulo

  • Obras em desconformidade com normas legais ou regulamentares aplicáveis​​



Medidas de Tutela da Legalidade Urbanística


O n.º 2 do artigo 102.º enumera as medidas que a administração pode adotar para repor a legalidade:​​

  • Embargo de obras — Suspensão imediata dos trabalhos (medida provisória e cautelar)

  • Suspensão administrativa — Suspensão da eficácia do ato de controlo prévio

  • Trabalhos de correção ou alteração — Ordem para realizar obras que corrijam as ilegalidades detetadas (sempre que possível)

  • Legalização — Procedimento que permite regularizar a situação ilegal, quando a obra puder conformar-se com as normas aplicáveis

  • Demolição total ou parcial — Destruição da obra ou de parte dela

  • Reposição do terreno — Devolução do terreno às condições anteriores ao início das obras

A hierarquia destas medidas não é aleatória. Reflete precisamente a aplicação do princípio da proporcionalidade: deve partir-se das medidas menos gravosas (correção, legalização) para as mais gravosas (demolição).​​



A Demolição como Medida de Ultima Ratio


Um dos aspetos mais relevantes da aplicação do princípio da proporcionalidade no urbanismo é o entendimento de que a demolição deve ser sempre uma medida de último recurso.​

A jurisprudência dos tribunais administrativos tem sido clara neste sentido:


"O princípio da proporcionalidade obriga a que só se lance mão da demolição depois de concluída a apreciação sobre a viabilidade da legalização".​

Isto significa que a Câmara Municipal não pode ordenar a demolição de uma obra irregular sem antes:

  1. Verificar se é possível legalizar a obra, isto é, se esta pode ser conformada com as normas legais e regulamentares em vigor

  2. Notificar o interessado para proceder à legalização, fixando prazo para o efeito

  3. Avaliar se a obra, tal como está, coloca em causa interesses públicos relevantes que justifiquem a sua demolição imediata

  4. Só após concluir que a legalização é inviável (porque a obra não pode cumprir os requisitos legais) ou que o interessado, devidamente notificado, não promoveu a legalização, pode a administração ordenar a demolição.​​



Exemplo prático


Caso: Um proprietário constrói um anexo no logradouro de uma habitação sem licença camarária. A obra está concluída há um ano.

Aplicação do princípio da proporcionalidade:

  1. Fiscalização municipal deteta a irregularidade

  2. Notificação ao proprietário para apresentar pedido de legalização (prazo fixado pela Câmara)

  3. Análise da viabilidade de legalização: A obra respeita recuos, altura, ocupação do solo e demais normas aplicáveis?

Cenário A — Se a obra puder ser legalizada: o proprietário apresenta projeto e termo de responsabilidade, a Câmara aprecia e, se conforme, defere a legalização

Cenário B — Se a obra não puder ser legalizada (viola normas imperativas): após audiência prévia, a Câmara ordena a demolição ou a realização de trabalhos de correção que a tornem conforme

Cenário C — Se o proprietário não responde ou não promove a legalização: após decurso do prazo e audiência prévia, a Câmara pode ordenar a demolição​​



A Legalização como Medida de Tutela da Legalidade


A legalização foi consagrada expressamente como medida de tutela da legalidade urbanística com a publicação do Decreto-Lei n.º 136/2014, de 9 de setembro, que alterou o RJUE.​

Esta inovação legislativa foi motivada pelo reconhecimento de que existem em Portugal milhares de construções ilegais — umas já concluídas, outras ainda em execução — e que a demolição sistemática destas obras seria:

  • Desproporcionada face ao interesse público em causa

  • Economicamente inviável (custos de demolição, realojamento, indemnizações)

  • Socialmente inaceitável (destruição de habitações, estabelecimentos comerciais)

  • Ambientalmente prejudicial (produção de resíduos de construção e demolição)​


Artigo 102.º-A do RJUE: Legalização

O artigo 102.º-A estabelece que, quando se verifique a realização de operações urbanísticas ilegais, se for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares em vigor, a Câmara Municipal notifica os interessados para a legalização das operações urbanísticas, fixando um prazo para o efeito.​​

Condições para a legalização:

A operação urbanística, tal como executada ou com alterações corretivas, deve poder conformar-se com:

  • Planos municipais ou intermunicipais de ordenamento do território

  • Medidas preventivas, servidões administrativas e restrições de utilidade pública

  • Normas legais e regulamentares aplicáveis (RGEU, acessibilidades, segurança contra incêndios, etc.)​​

Procedimento de legalização:

  • O interessado apresenta projeto que demonstre a conformidade da obra com as normas aplicáveis

  • Junta Termo de Responsabilidade subscrito por técnico habilitado

  • Paga as taxas devidas (incluindo, quando aplicável, taxas agravadas por não ter obtido licença prévia)

  • A Câmara aprecia o pedido nos mesmos termos de um licenciamento ou comunicação prévia normal​​


Legalização Coerciva

Caso o interessado não promova a legalização no prazo fixado, a Câmara pode, ela própria, promover oficiosamente a legalização coerciva, executando as obras necessárias e cobrando os custos ao proprietário, ou ordenar a demolição.​​



Casos em que a Proporcionalidade cede


Embora o princípio da proporcionalidade imponha a ponderação e a escolha da medida menos gravosa, existem situações em que a demolição pode ser imediata e justificada:


Perigo Iminente

Quando a obra ameaça ruína ou oferece perigo para a saúde pública e segurança das pessoas, a Câmara pode ordenar a demolição imediata, sem necessidade de avaliar previamente a possibilidade de legalização.​

Fundamento: O interesse público na proteção da vida e integridade física das pessoas sobrepõe-se ao interesse do proprietário na manutenção da obra.


Desconformidade Estrutural insanável

Quando a obra viola de forma grave e insanável normas imperativas — por exemplo:

  • Construção em área non aedificandi (zona de proteção de linhas de água, servidão aeronáutica, etc.)

  • Ultrapassagem significativa de índices urbanísticos (altura, ocupação do solo, área de construção)

  • Violação de normas de segurança estrutural que inviabilizam qualquer correção

Nestes casos, a legalização é objetivamente impossível, pelo que a demolição é a única medida adequada.​​



Recusa ou Inércia do Interessado


Quando o interessado, devidamente notificado para promover a legalização, nada faz ou não apresenta projeto conforme, a Câmara não está obrigada a aguardar indefinidamente.​

Como refere a jurisprudência:


"Não se trata de ponderar ou não a demolição nos termos da máxima metódica da proporcionalidade, mas sim, neste caso concreto, de adotar uma medida de tutela da legalidade urbanística quando a edificação é ilegal e o interessado, apesar de notificado para tal, não promoveu a sua legalização. É logicamente imposto pela legalidade administrativa a obrigação de repor a legalidade urbanística e não exigir à Administração Pública que espere eternamente".​


Dimensões do Princípio da Proporcionalidade


O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três dimensões ou subprincípios, todos aplicáveis às medidas de tutela da legalidade urbanística:


1. Adequação

A medida adotada deve ser apta a atingir o fim pretendido, que é a reposição da legalidade urbanística.

Exemplo: Se a ilegalidade consiste apenas na falta de licença, mas a obra está conforme com todas as normas, a medida adequada é a legalização, não a demolição.


2. Necessidade

Entre várias medidas adequadas, deve escolher-se a menos gravosa para os direitos e interesses dos particulares.

Exemplo: Se é possível corrigir a obra através de pequenas alterações (remoção de uma estrutura, redução de área), essa solução deve ser privilegiada face à demolição total.


3. Proporcionalidade em sentido estrito (ou Justa Medida)

Deve existir uma relação equilibrada entre os sacrifícios impostos ao particular e os benefícios obtidos para o interesse público.

Exemplo: Ordenar a demolição de uma habitação consolidada há décadas, que serve de residência permanente a uma família, por uma pequena desconformidade regulamentar que não afeta interesses públicos relevantes, seria uma medida desproporcionada em sentido estrito.​​


Vista do lote vizinho do anexo aprovado
Vista do lote vizinho do anexo aprovado

Aplicação prática: Responsabilidade da Administração


A aplicação correta do princípio da proporcionalidade não é apenas uma exigência legal abstrata. Tem consequências práticas para a atuação das Câmaras Municipais:


Dever de Fundamentação

Sempre que ordene a demolição de uma obra, a Câmara deve fundamentar adequadamente a decisão, explicando:

  • Por que razão a legalização é inviável

  • Quais as normas legais ou regulamentares violadas

  • Por que razão a demolição é a medida adequada, necessária e proporcionada​​


A falta de fundamentação adequada pode conduzir à anulação da decisão em sede de impugnação contenciosa.


Audiência Prévia

Antes de ordenar a demolição, a Câmara deve promover a audiência prévia do interessado, nos termos do Código do Procedimento Administrativo, permitindo-lhe pronunciar-se sobre:

  • A qualificação da situação como ilegal

  • A viabilidade ou inviabilidade de legalização

  • A adequação e proporcionalidade da medida de demolição​​


Responsabilidade Civil

A adoção de medidas desproporcionadas — nomeadamente a demolição de obras que poderiam ser legalizadas — pode gerar responsabilidade civil da administração, obrigando à indemnização dos prejuízos causados ao proprietário.​​



Fiscalização e Proporcionalidade


A fiscalização das operações urbanísticas é um dever legal da administração municipal, nos termos do artigo 93.º do RJUE.​​

No entanto, esta fiscalização deve também respeitar o princípio da proporcionalidade:


Fiscalização preventiva vs. sucessiva

Com as recentes alterações ao RJUE (Decreto-Lei n.º 10/2024), o controlo prévio dos projetos foi simplificado, passando a incidir sobretudo nos aspetos urbanísticos (conformidade com planos, volumetria, inserção urbana).​​

Os aspetos técnicos (especialidades, normas de construção) são agora garantidos através de termos de responsabilidade subscritos pelos técnicos, transferindo-se a responsabilidade para a esfera do autor do projeto e do dono da obra.​

Em contrapartida, reforçou-se a fiscalização sucessiva — controlo realizado durante e após a execução da obra — para detetar eventuais desconformidades.​

Esta fiscalização sucessiva deve ser:

  • Eficaz: Capaz de detetar ilegalidades relevantes

  • Proporcional: Não pode ser excessivamente intrusiva ou paralisante da atividade construtiva

  • Orientada ao risco: Deve concentrar-se nas situações de maior gravidade ou impacto​



Conselhos práticos


Para proprietários e promotores:

  • Não construa sem licença ou comunicação prévia. Mesmo que pense que a obra é "pequena" ou "não se nota", pode ser obrigado a demolir ou a pagar taxas agravadas

  • Se detetou uma ilegalidade na sua obra, não fique passivo. Consulte um técnico habilitado e promova a legalização o mais rapidamente possível

  • Responda sempre às notificações da Câmara Municipal. Mesmo que discorde, apresente os seus argumentos em sede de audiência prévia

  • Guarde toda a documentação (licenças, projetos, termos de responsabilidade, notificações) organizada e acessível

Para a administração municipal:

  • Aplique o princípio da proporcionalidade em todas as decisões de fiscalização e reposição da legalidade

  • Fundamente adequadamente as decisões, especialmente quando ordene demolições

  • Promova sempre a audiência prévia do interessado antes de adotar medidas gravosas

  • Privilegie a legalização sempre que esta seja objetivamente possível



Para considerar


O princípio da proporcionalidade é um pilar fundamental do Estado de Direito e assume particular relevância no domínio do urbanismo e da edificação, onde os interesses em confronto — interesse público na legalidade urbanística, direito de propriedade, direito à habitação, proteção do ambiente construído — exigem ponderação cuidadosa e decisões equilibradas.

A demolição de uma obra irregular não é uma decisão administrativa banal. Representa a destruição de um bem económico (muitas vezes de valor significativo), pode afetar direitos fundamentais (habitação, atividade económica) e gera custos sociais e ambientais (realojamento, resíduos de construção). Por isso, o legislador e a jurisprudência impõem que a demolição seja sempre ultima ratio — último recurso, apenas admissível quando se conclua pela impossibilidade objetiva de legalização ou quando o interessado, devidamente notificado, não promova essa legalização. Esta exigência não significa tolerância com a ilegalidade. Significa, sim, que a reposição da legalidade deve ser prosseguida de forma inteligente, ponderada e proporcionada, privilegiando soluções que permitam corrigir as desconformidades sem destruir o que está construído. Para os proprietários, a mensagem é clara: construir em conformidade com a lei é sempre a melhor opção. Evita custos, riscos, litígios e a possibilidade de demolição. Mas se, por qualquer razão, se confrontar com uma ilegalidade, não fique passivo. Procure aconselhamento técnico qualificado e promova ativamente a regularização da situação. Para as Câmaras Municipais, o princípio da proporcionalidade impõe uma fiscalização eficaz mas equilibrada, decisões fundamentadas e transparentes e uma postura de diálogo e colaboração com os particulares sempre que tal seja compatível com a prossecução do interesse público.

Só assim se constrói um urbanismo de qualidade, respeitador da legalidade mas também dos direitos e da dignidade das pessoas.



bottom of page