Legalização vs. Demolição: Análise económica da tomada de decisão
- Ana Carolina Santos

- 3 de out.
- 6 min de leitura
A decisão entre legalizar ou demolir construções irregulares representa uma das questões mais complexas no panorama urbanístico português. Esta escolha, longe de ser meramente técnica, envolve uma análise económica rigorosa que pode determinar o futuro de um património edificado e o destino financeiro dos proprietários. Com base nos instrumentos normativos disponíveis, nomeadamente a Portaria n.º 243/84 e o regime jurídico vigente, importa compreender os fatores que devem orientar esta tomada de decisão crítica.
A legislação portuguesa estabelece que a demolição constitui sempre uma medida de última ratio, devendo a administração municipal avaliar previamente a viabilidade de legalização antes de ordenar a destruição de qualquer construção. Esta abordagem reflete o princípio da proporcionalidade, que exige o menor sacrifício possível aos particulares na reposição da legalidade urbanística.

Quadro normativo da Legalização
Fundamentos da Portaria n.º 243/84
A Portaria n.º 243/84 surgiu como resposta prática ao reconhecimento de que "a maioria das construções clandestinas dificilmente se enquadra nos mínimos técnicos considerados no RGEU". Este diploma reconhece a necessidade de "ter em conta os vultosíssimos investimentos necessários para harmonizar as construções existentes com as exigências do RGEU ou, em face de tal impossibilidade, as pesadíssimas implicações económico-sociais da operação de demolição em larga escala".
Pressupostos para aplicação
Para que uma construção possa beneficiar das condições especiais estabelecidas na portaria, deve cumprir dois requisitos fundamentais:
Acesso independente: A edificação deve possuir entrada própria
Ligação às infraestruturas: Deve ser tecnicamente viável a conexão às redes gerais de água, saneamento e energia
Tolerâncias dimensionais admissíveis
A portaria estabelece tolerâncias significativas face ao RGEU:
Compartimentos habitacionais:
Área mínima geral: 8 m²
Habitações com menos de 5 compartimentos: pelo menos um com 10,5 m²
Habitações com 5 ou mais compartimentos: pelo menos dois com 10,5 m²
Compartimentos de dimensão reduzida:
Habitações com mais de 4 compartimentos: 1 compartimento pode ter apenas 7 m²
Habitações com mais de 6 compartimentos: 2 compartimentos podem ter apenas 7 m²
Cozinhas:
Área mínima padrão: 5 m²
Área mínima reduzida: 4 m² (quando a habitação tem menos de 4 compartimentos)
Pé-direito:
Redução admissível até 2,35 m em edificações destinadas a habitação
Análise Económica da decisão
Custos da Legalização
A opção pela legalização envolve diversos custos que devem ser cuidadosamente quantificados:
Custos directos:
Honorários técnicos (projeto de legalização): €2.000 - €5.000
Taxas municipais: €500 - €3.000
Obras de correção necessárias: variáveis (€5.000 - €50.000+)
Vistorias e certificações: €300 - €800
Custos indirectos:
Tempo de processo (6 meses a 2 anos)
Custos de oportunidade durante o período de legalização
Eventual desvalorização temporária do imóvel
Custos da Demolição
A alternativa da demolição apresenta custos frequentemente mais elevados:
Custos directos de demolição:
Demolição propriamente dita: €20 - €60 por m²
Remoção de escombros: €15 - €25 por m³
Reposição do terreno: €10 - €30 por m²
Custos de oportunidade:
Perda total do investimento realizado na construção
Custos de realojamento temporário
Perda de rendimento (no caso de imóveis de rendimento)
Impacto patrimonial:
Desvalorização do terreno sem construção
Perda de mais-valias futuras
Benefícios da Legalização
A legalização bem-sucedida gera benefícios tangíveis:
Valorização patrimonial:
Aumento do valor de mercado (15% - 30% em média)
Possibilidade de financiamento bancário
Acesso a seguros de habitação em condições normais
Benefícios operacionais:
Ligação legal às redes de infraestruturas
Possibilidade de transação imobiliária
Emissão de autorização de utilização
Segurança jurídica:
Eliminação do risco de demolição
Conformidade com obrigações fiscais (IMI)
Acesso a programas de apoio à habitação
Fatores determinantes da Viabilidade
Conformidade técnica
A avaliação da conformidade técnica constitui o primeiro filtro na análise de viabilidade:
Aspetos estruturais:
Solidez da construção existente
Segurança contra incêndios
Condições de salubridade
Aspetos urbanísticos:
Respeito pelos parâmetros de edificação
Adequação às servidões e condicionalismos
Conformidade com instrumentos de gestão territorial
Análise Custo-Benefício prática
Para uma tomada de decisão informada, recomenda-se a aplicação de uma matriz de análise que considere:
Cenário | Custo total | Benefício | Rácio Custo-Benefício |
Legalização com obras menores | €8.000 - €15.000 | Valorização 20-30% | Favorável |
Legalização com obras significativas | €20.000 - €40.000 | Valorização 15-25% | Análise caso a caso |
Legalização com obras estruturais | €40.000+ | Valorização 10-20% | Frequentemente desfavorável |
Critérios de Inviabilidade
A legalização pode revelar-se inviável em situações específicas:
Violações irremediáveis:
Invasão de domínio público
Localização em áreas de proteção ambiental
Desrespeito por afastamentos mínimos não corrigíveis
Inviabilidade económica:
Custos de correção superiores ao valor de mercado pós-legalização
Impossibilidade técnica de ligação às infraestruturas
Exigência de demolições parciais significativas
Processo decisório na prática
Procedimento de Avaliação Municipal
A administração municipal deve seguir um procedimento estruturado na avaliação da viabilidade:
Análise prévia da conformidade com instrumentos de gestão territorial
Avaliação das condições técnicas de segurança e salubridade
Quantificação dos custos de eventual regularização
Ponderação do princípio da proporcionalidade
Prazo de prescrição
O quadro legal estabelece que "o prazo para a câmara instaurar um processo é de 5 anos após a conclusão da obra". Após este período, pode alegar-se prescrição da contraordenação, embora a possibilidade de ordem de demolição se mantenha em casos de violação de regras fundamentais.
Estratégias de defesa
Para proprietários confrontados com ordens de demolição, existem várias estratégias defensivas:
Argumentos procedimentais:
Deficiências no procedimento administrativo
Falta de notificação prévia adequada
Ausência de avaliação da viabilidade de legalização
Argumentos materiais:
Interesse público e social (única habitação da família)
Boa-fé e erro induzido por indicações municipais
Desproporcionalidade da medida demolição
Recursos judiciais:
Impugnação da ordem de demolição no tribunal administrativo
Pedido de providência cautelar para suspensão da demolição
Casos especiais e exceções
Em AUGI, o processo de legalização segue procedimentos específicos que incluem:
Aprovação de plano de reconversão pela Câmara Municipal
Regularização dos loteamentos existentes
Adaptação das infraestruturas às necessidades atuais
Edifícios de Valor Patrimonial
Construções com interesse arquitetónico ou histórico beneficiam de tratamento especial, com maior flexibilidade na aplicação de normas técnicas, privilegiando-se sempre a conservação face à demolição.
Tolerâncias em Operações de Reabilitação
O Decreto-Lei n.º 53/2014 estabelece medidas excecionais para reabilitação urbana, permitindo dispensa de determinadas normas técnicas cujo cumprimento implicaria "custos incomportáveis e que não se traduzem numa verdadeira garantia da habitabilidade".
"A legalização surge como contraponto à demolição da construção, devendo a Administração, em respeito pelo princípio da proporcionalidade, proceder à apreciação sobre a viabilidade da legalização antes de ordenar a destruição"
Conselhos práticos para Proprietários
Avaliação preliminar
Antes de decidir entre legalização ou demolição, recomenda-se:
Consulta técnica especializada: Contratação de arquiteto para análise da viabilidade
Pedido de Informação Prévia: Solicitação à Câmara Municipal sobre possibilidade de legalização
Orçamentação detalhada: Quantificação precisa dos custos envolvidos
Documentação necessária
Para instruir pedido de legalização:
Levantamento topográfico do terreno e da construção
Projeto de arquitetura da situação existente
Elementos comprovativos das condições de segurança
Termo de responsabilidade de técnico habilitado
Timing da decisão
A decisão deve considerar:
Urgência do processo: Existência de ordem de demolição iminente
Janelas de oportunidade: Alterações aos instrumentos de gestão territorial
Condições de mercado: Momento favorável para investimento em legalização

Perspectivas futuras
Evolução Legislativa
A tendência legislativa aponta para maior flexibilização dos processos de legalização, com o Simplex Urbanístico e outras medidas de simplificação administrativa a facilitarem a regularização de situações consolidadas.
Sustentabilidade Urbana
A política de legalização alinha-se com objetivos de sustentabilidade urbana, evitando o desperdício de recursos inerente às demolições e promovendo a densificação controlada dos tecidos urbanos existentes.
Digitalização dos processos
A modernização dos procedimentos administrativos, através de plataformas digitais, promete reduzir custos e prazos dos processos de legalização, tornando esta opção mais atrativa economicamente.
Em poucas palavras
A decisão entre legalização e demolição de construções irregulares deve ser sempre baseada numa análise económica rigorosa que considere não apenas os custos imediatos, mas também os benefícios a longo prazo e o enquadramento legal aplicável. A legislação portuguesa, através da Portaria n.º 243/84 e do RJUE, estabelece um quadro que privilegia a legalização sempre que tecnicamente viável, reconhecendo tanto as realidades económicas dos proprietários quanto as exigências de ordenamento territorial.
O sucesso desta análise depende fundamentalmente da qualidade da avaliação técnica prévia, da quantificação rigorosa dos custos envolvidos e do conhecimento profundo do quadro normativo aplicável. A legalização, quando viável, representa frequentemente a solução mais equilibrada, permitindo a regularização das situações consolidadas com menor impacto económico e social.
Para os proprietários, a recomendação é clara: procurar aconselhamento técnico especializado logo que identificada uma situação de irregularidade, permitindo uma tomada de decisão informada e atempada. A procrastinação apenas agrava os custos e reduz as opções disponíveis.
A evolução do quadro legal aponta para uma maior flexibilização dos processos de legalização, reconhecendo que a demolição sistemática não constitui solução adequada para o vasto património edificado em situação irregular. Esta tendência reforça a importância de uma análise custo-benefício criteriosa, que permita aproveitar as oportunidades de regularização disponíveis no ordenamento jurídico português.



