Transformar um Armazém em Casa
- Ana Carolina Santos
- 1 de ago.
- 4 min de leitura
A reconversão de um armazém – espaço pensado para armazenar mercadoria, não para acolher pessoas – num lar confortável, legal e seguro é uma operação técnica e jurídica desafiante mas cada vez mais procurada. Neste post sintetizamos as etapas-chave, a regulamentação aplicável e os cuidados de projecto que qualquer investidor ou futuro morador deve ter em conta em Portugal.

Viabilidade urbanística: antes de sonhar, confirme
Classificação do solo – Verifique no Plano Director Municipal (PDM) se a parcela admite uso habitacional.
Pedido de Informação Prévia (PIP) – Art.º 14 do RJUE. Garante, em 20+20 dias, a posição vinculativa da Câmara sobre a mudança de uso e parâmetros urbanísticos.
Servidões e restrições – Áreas RAN, REN, linhas de água, património protegido, zonas aeroportuárias, etc. exigem pareceres adicionais.
Análise de contexto – O armazém pode ficar em zona mista ou industrial; pode ser necessário um projecto de compatibilização ambiental (ruído, emissões) antes de obter licença de habitação.
Regime de licenciamento
Mudança de utilização é operação urbanística sujeita a controlo prévio (art.º 4.º n.º 4-k do RJUE).
Licença vs. Comunicação Prévia – Se existir plano detalhado que já preveja habitação, pode ser declarada por comunicação prévia; caso contrário, obriga a licença de obras.
Isenção? Não aplicável: a obra altera o uso e, quase sempre, a estrutura.
Projecto de arquitectura: requisitos de habitabilidade
Dimensões mínimas (RGEU, art.º 65.º-71.º)
Compartimento | Área mínima | Observações |
Quarto / Sala | 8 m² | Pelo menos um com 10,5 m² se a casa tiver ≤4 compartimentos |
Cozinha | 5 m² (4 m² em T0-T1) | Distância livre entre bancadas ≥1,10 m |
WC completo | 3,5 m² (T0-T2) ou 4,5 m² (T3-T4) | Iluminação e ventilação natural obrigatórias |
Corredores | ≥1,20 m (edifícios novos) | Em existentes pode reduzir para 0,90 m em troços curtos |
Pé-direito | 2,70 m (mín. 2,40 m) | Pode baixar para 2,35 m em legalizações especiais |
Iluminação, ventilação e insolação
Janelas ≥10% da área do compartimento.
Ventilação natural obrigatória nos compartimentos principais; mecânica admitida em WC interiores.
Distância mínima a paredes fronteiras: metade da altura, nunca < 3 m (art.º 73.º RGEU).
Estrutura e segurança
Avaliação estrutural assinada por engenheiro civil; termo de responsabilidade art.º 10 RJUE.
Reforços de fundações ou lajes muitas vezes indispensáveis para suportar sobrecargas residenciais (pavimentos, divisórias, escadas).
Eficiência energética & conforto
Envolvente deve cumprir o REH (Decreto-Lei 101-D/2020).
Isolamento acústico mínimo (Regulamento do Ruído) – paredes medianeiras e coberturas adaptadas.
Pré-instalação de renovação de ar (sistemas mecânicos) recomendada em antigos espaços sem caixilharia habitacional.
Acessibilidade universal
O Decreto-Lei 163/2006 impõe um “percurso acessível” desde a via pública até todas as zonas comuns:
Rampas ≤ 6% e larguras ≥ 1,20 m.
Portas com vão útil ≥ 0,87 m.
WCs adaptados em edifícios multifamiliares ou, em moradias, espaço reservado para futura adaptação.
Estacionamento: 1 lugar acessível em parque com até 10 lugares; depois, progressivamente mais.
Especialidades e instalações técnicas
Águas e esgotos – redes interiores novas, sifões e ventilação de queda (art.º 90-93 RGEU).
Eletricidade e telecomunicações – projecto ITED exigido; subida de potência contratada para aquecimento ou bombagem.
Segurança contra incêndios – no uso “habitação” aplica-se a Portaria 1532/2008 (classe 0) mas podem surgir requisitos adicionais se mantiver parte industrial.
Ventilação de cozinhas e evacuação de fumos – chaminé individual ou sistema colectivo (art.º 108-112 RGEU).
Fases do processo municipal
Projecto de Arquitectura
Pareceres externos (acessibilidades, património, ARH, etc.)
Projectos de Especialidades
Pagamento de taxas urbanísticas
Alvará de construção → início da obra (com livro de obra* digital)
Vistoria ou termo de responsabilidade final
Licença de utilização / atualização da Caderneta Predial.
*Livro de obra já é electrónico desde 2024.

Custos principais
Taxas camarárias (licença + infra-estruturas).
Projectos e coordenação técnica (arquitectura, engenharia, acústica, térmica, acessibilidade).
Obra de reabilitação – grande parte do orçamento destina-se a reforços estruturais, isolamento e redes técnicas.
Erros frequentes a evitar
– Ignorar limitações do PDM e gastar em projecto antes da viabilidade.
– Subestimar alturas livres: armazéns com vigas baixas raramente cumprem 2,40 m.
– Descurar barreiras de humidade em lajes térreas.
– Supor que interiores “sem alterar fachadas” dispensam licenciamento – a mudança de uso obriga a novo título.
– Não prever custos de reforço estrutural e isolamento acústico.
Para considerar
Transformar um armazém num espaço habitável é uma excelente forma de recuperar património e valorizar zonas urbanas, mas exige um roteiro técnico-legal rigoroso: confirmar a viabilidade urbanística, garantir que o novo programa cumpre RGEU, DL 163/2006 e REH, e conduzir o processo camarário sem falhas documentais. O sucesso mede-se na segurança, no conforto e na conformidade legal da futura habitação – fatores que seguem consigo durante toda a vida útil do imóvel.