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Pé-Direito reduzido: As flexibilidades legais em processos de Legalização

  • Foto do escritor: Ana Carolina Santos
    Ana Carolina Santos
  • 15 de out.
  • 10 min de leitura

Quando se confronta com a legalização de um imóvel antigo ou com a necessidade de regularizar alterações efetuadas num edifício, uma das questões técnicas que mais frequentemente cria obstáculos é o pé-direito reduzido. Compartimentos habitacionais com alturas inferiores aos 2,40 metros exigidos pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) são uma realidade comum em milhares de habitações portuguesas, especialmente nas construídas antes de 1977 ou em operações de aproveitamento de sótãos e águas-furtadas.

Mas será que um pé-direito inferior ao estabelecido pela lei inviabiliza automaticamente a legalização? A resposta é não — desde que se cumpram condições específicas previstas na legislação. Compreender quando e como é possível legalizar situações de pé-direito reduzido pode ser determinante para salvar um projeto de legalização ou reabilitação e evitar custos desnecessários ou até a demolição de construções existentes.

Neste post, exploramos de forma clara e objetiva o que é o pé-direito, quais as exigências legais aplicáveis, que exceções e tolerâncias existem em procedimentos de legalização e reabilitação, e que cuidados deve ter ao lidar com situações de pé-direito reduzido.


Moradia antiga convertida em restaurante, vista do interior
Moradia antiga convertida em restaurante, vista do interior

O que é o Pé-Direito?


O pé-direito é a distância vertical livre medida entre o pavimento acabado de um compartimento e o teto acabado do mesmo compartimento.​​

Diferença entre altura piso a piso e pé-direito livre:

  • Altura piso a piso: distância entre o topo da laje de um piso e o topo da laje do piso imediatamente superior (inclui a espessura das lajes e revestimentos)​​

  • Pé-direito livre: distância entre o pavimento acabado e o teto acabado (não inclui a espessura da laje nem dos revestimentos)​​

Exemplo prático:

Se a altura piso a piso é de 2,70 m e a laje tem 0,20 m de espessura, com revestimentos de pavimento e teto que somam 0,10 m, o pé-direito livre será de 2,40 m.


Exigências legais: O que estabelece o RGEU

O artigo 65.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382/51 e alterado pelo Decreto-Lei n.º 650/75, estabelece as exigências mínimas de altura para edificações destinadas a habitação.​​


Regra geral

  • Altura mínima piso a piso: 2,70 m

  • Pé-direito livre mínimo: 2,40 m​​

Estas dimensões aplicam-se à generalidade dos compartimentos habitacionais (salas, quartos, cozinhas).


Exceções admitidas no RGEU

1. Compartimentos de apoio (n.º 2 do artigo 65.º):

Vestíbulos, corredores, instalações sanitárias, despensas e arrecadações: pé-direito pode reduzir-se ao mínimo de 2,20 m.​​

2. Tetos com vigas, inclinados ou abobadados (n.º 4 do artigo 65.º):

  • A altura mínima (2,40 m) deve ser respeitada em pelo menos 80% da superfície do teto

  • Nos restantes 20%, o pé-direito pode descer até 2,20 m​​

3. Sótãos habitáveis, águas-furtadas e mansardas:

  • O pé-direito mínimo de 2,40 m só é exigido em metade da área do compartimento

  • Na restante metade, pode descer até 2,00 m


Estabelecimentos Comerciais

Para pisos destinados a estabelecimentos comerciais, o pé-direito livre mínimo é de 3,00 m (n.º 3 do artigo 65.º).​​

Exceção: Em tetos com vigas, inclinados ou abobadados, mantendo-se a altura de 3,00 m em 80% da superfície, o pé-direito pode descer até 2,70 m nos restantes 20%.​​



Tolerâncias em Operações de Reabilitação: Portaria n.º 304/2019


A Portaria n.º 304/2019, de 12 de setembro, estabelece um regime especial de flexibilização para operações de reabilitação de edifícios ou frações com licença de construção emitida até 1 de janeiro de 1977.​


Âmbito de aplicação

A Portaria 304/2019 aplica-se exclusivamente a:

  • Operações de reabilitação (obras de conservação, alteração ou reconstrução) em edifícios existentes

  • Edifícios ou frações com licença de construção emitida até 1 de janeiro de 1977

Não se aplica a:

  • Novas construções

  • Edifícios licenciados após 1 de janeiro de 1977

  • Operações que não se qualifiquem como reabilitação​


Flexibilizações admitidas

O artigo 4.º da Portaria 304/2019 estabelece que, em operações de reabilitação abrangidas pelo seu âmbito, pode ser dispensado o cumprimento integral das normas do RGEU, desde que se demonstre que:​

  • O cumprimento integral dessas normas é impossível ou não é razoável exigir

  • Não são comprometidas as condições mínimas de segurança, salubridade, arejamento e conforto da habitação​

Em termos práticos: Num edifício antigo (licenciado antes de 1977) em operação de reabilitação, pode ser aceite um pé-direito inferior a 2,40 m se se demonstrar que não é razoável ou viável aumentar esse pé-direito e se as condições mínimas de habitabilidade estiverem asseguradas.​



Legalização de Obras: Artigo 102.º-A do RJUE


O artigo 102.º-A do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) regula a legalização de operações urbanísticas realizadas ilegalmente (sem licença ou em desconformidade com a licença).​​


Princípio geral

A legalização só é possível "se for possível assegurar a conformidade" da obra com as disposições legais e regulamentares em vigor, incluindo normas técnicas de construção como o RGEU.​​

Isto significa que, regra geral, não é possível legalizar uma obra que não cumpra o pé-direito mínimo de 2,40 m estabelecido no RGEU, salvo se se enquadrar numa das exceções previstas na lei.​


Exceção: Dispensa de cumprimento de normas técnicas (n.º 5 do artigo 102.º-A)

O n.º 5 do artigo 102.º-A admite que "pode ser dispensado o cumprimento de normas técnicas relativas à construção cujo cumprimento se tenha tornado impossível ou que não seja razoável exigir", desde que:​​

Tenham sido cumpridas as condições técnicas vigentes à data da realização da operação urbanística

O requerente faça prova da data em que a obra foi realizada​​

Exemplo prático: Uma habitação construída em 1960 (antes da entrada em vigor do RGEU na redação atual) com pé-direito de 2,30 m pode, em princípio, ser legalizada se se provar que à data da construção esse pé-direito era conforme com as normas então em vigor.​


Limites da Dispensa

A dispensa de cumprimento de normas técnicas não é automática nem ilimitada:​

  • Só se aplica quando o cumprimento integral se tenha tornado impossível ou não seja razoável exigir

  • Não se aplica se a obra foi realizada já após a entrada em vigor das normas que não cumpre (ou seja, se foi construída em desconformidade consciente com normas já em vigor)​

  • Exige sempre prova da data de construção e das normas vigentes nessa data



Portaria n.º 243/84: Flexibilizações para construções clandestinas


A Portaria n.º 243/84, de 17 de abril, foi um diploma específico criado para facilitar a legalização de construções clandestinas realizadas durante as décadas de 1960-1980, período em que milhares de famílias construíram as suas habitações sem seguir os regulamentos oficiais.​


Contexto histórico

A revogação do Decreto-Lei n.º 278/71 pelo Decreto-Lei n.º 804/76 criou um vazio legal que dificultava a apreciação de projetos de legalização. A Portaria 243/84 surgiu como resposta pragmática, estabelecendo critérios mínimos de habitabilidade que permitissem regularizar edificações que não cumpriam integralmente o RGEU.​


Flexibilização do Pé-Direito

A Portaria 243/84 reduziu o pé-direito mínimo padrão para:

  • 2,35 m (face aos 2,40 m do RGEU)​

Para sótãos habitáveis, águas-furtadas e mansardas, a Portaria manteve a regra de que o pé-direito mínimo de 2,35 m só é exigido em metade da área, podendo a outra metade ter pé-direito inferior.​


Aplicabilidade atual

A Portaria 243/84 foi um diploma específico para um contexto temporal e social concreto. A sua aplicabilidade direta hoje é limitada, mas os seus critérios podem ser invocados em procedimentos de legalização de construções antigas, demonstrando que padrões habitacionais ligeiramente inferiores aos do RGEU foram, num determinado momento, considerados admissíveis pelo legislador.​


Estabelecimentos Comerciais: Tolerâncias em adaptações

Para estabelecimentos comerciais, o RGEU exige um pé-direito mínimo de 3,00 m.​​

No entanto, conforme parecer da CCDR Centro (DAJ 226/07), em adaptações de edifícios pré-existentes (em oposição a novas construções), pode ser admitida uma tolerância até 2,70 m, por força:​

Nota importante: Esta tolerância aplica-se apenas a adaptações de edifícios pré-existentes, não a novas construções ou reconstruções profundas.​


Moradia antiga convertida em restaurante, vista do exterior
Moradia antiga convertida em restaurante, vista do exterior

Casos práticos e Jurisprudência


Caso 1: Legalização de Obras de Alteração com Pé-Direito de 2,28 m

Situação: Pedido de legalização de obras de alteração numa moradia que resultaram num pé-direito de 2,28 m (inferior aos 2,40 m exigidos pelo RGEU).​

Posição do interessado: Invocou o artigo 4.º da Portaria 304/2019, argumentando que o pé-direito "não compromete as condições mínimas de segurança e de salubridade".​

  • A Portaria 304/2019 não é aplicável ao caso, pois não se trata de uma operação de reabilitação em edifício licenciado antes de 1977

  • Aplica-se o RGEU (artigo 65.º), que estabelece pé-direito mínimo de 2,40 m

  • Não se verificam as condições do n.º 5 do artigo 102.º-A do RJUE (dispensa de normas técnicas), pois à data das obras já estava em vigor a norma do RGEU

  • Conclusão: O pedido de legalização deve ser indeferido por não cumprir os requisitos legais​

Lição: A invocação de flexibilizações previstas em diplomas específicos (como a Portaria 304/2019) exige o cumprimento rigoroso do âmbito de aplicação desses diplomas. Não basta argumentar que a desconformidade é "ligeira" ou "não compromete condições de habitabilidade".​


Caso 2: Adaptação de fração para Comércio com Pé-Direito de 2,80 m

Situação: Adaptação de uma habitação para atelier de artesanato. O pé-direito original era de 2,80 m, inferior aos 3,00 m exigidos pelo RGEU para estabelecimentos comerciais.​

Questão: Deve o projeto prever o rebaixamento da laje para cumprir o pé-direito de 3,00 m?​

  • O pé-direito de 3,00 m aplica-se a novas construções, reconstruções ou profundas remodelações

  • Em adaptações de edifícios pré-existentes, por força do princípio da proporcionalidade e do Decreto-Lei n.º 243/86, pode ser admitida uma tolerância até 2,70 m

  • No caso concreto (pé-direito de 2,80 m), não se justifica o rebaixamento da laje, pois a altura é suficiente para garantir a salubridade e segurança dos trabalhadores​

Lição: Em adaptações de edifícios existentes, pode ser aplicado o princípio da proporcionalidade, evitando-se exigir obras de adaptação desproporcionadas quando a desconformidade é ligeira e não compromete o interesse público prosseguido pela norma técnica.​



Conselhos práticos


Para proprietários e promotores:

  • Identifique claramente o tipo de operação: Nova construção, reconstrução, reabilitação ou legalização? Cada uma tem requisitos e tolerâncias diferentes

  • Verifique a data da licença de construção original: Se o edifício foi licenciado antes de 1977, pode beneficiar das flexibilizações da Portaria 304/2019 (em operações de reabilitação)

  • Recolha documentação sobre a data de construção: Se pretende legalizar uma obra antiga, deve provar quando foi construída e quais as normas em vigor nessa data

  • Não assuma que "desconformidades ligeiras" são automaticamente aceites: A lei exige cumprimento rigoroso das normas técnicas, salvo exceções expressamente previstas

  • Consulte técnicos qualificados antes de avançar: Arquitetos e engenheiros com experiência em legalização e reabilitação podem avaliar se o seu caso se enquadra nas exceções previstas na lei

  • Para técnicos (arquitetos e engenheiros):

  • Analise cuidadosamente o enquadramento legal: Verifique se a operação se insere no âmbito da Portaria 304/2019, do artigo 102.º-A do RJUE ou de outro regime especial

  • Fundamente adequadamente os pedidos de dispensa: Se invocar dispensa de cumprimento de normas técnicas ao abrigo do n.º 5 do artigo 102.º-A, apresente fundamentação técnica sólida demonstrando que o cumprimento é impossível ou não razoável

  • Demonstre que as condições de habitabilidade estão asseguradas: Mesmo quando existem tolerâncias, é necessário provar que as condições mínimas de segurança, salubridade e conforto não são comprometidas

  • Não sobrevalorize a margem de flexibilidade: As exceções e tolerâncias são interpretadas restritivamente pelas Câmaras Municipais e pelos tribunais


Para Câmaras Municipais:

  • Aplique as normas técnicas com rigor, mas com proporcionalidade: Exija o cumprimento das normas do RGEU, mas avalie se, no caso concreto, existem fundamentos legais para dispensa (Portaria 304/2019, artigo 102.º-A do RJUE, princípio da proporcionalidade)

  • Verifique o enquadramento factual: Confirme se se trata efetivamente de reabilitação de edifício antigo, adaptação de edifício existente, ou nova construção/reconstrução

  • Fundamente adequadamente as decisões: Tanto o deferimento (com dispensa de normas técnicas) como o indeferimento devem ser fundamentados, explicando por que razão a situação se enquadra ou não nas exceções legais



Para considerar


O pé-direito mínimo é uma exigência técnica fundamental para garantir condições adequadas de habitabilidade, salubridade, ventilação, iluminação e conforto térmico e acústico nos edifícios. As normas do RGEU, estabelecidas há décadas mas ainda em vigor, refletem padrões mínimos que a experiência e a ciência demonstraram ser necessários para assegurar a qualidade de vida dos ocupantes.

No entanto, o legislador reconheceu que nem todas as situações podem ser tratadas de forma rígida e uniforme. Edifícios antigos, construções realizadas em épocas em que vigoravam normas diferentes, adaptações de espaços pré-existentes — todas estas são realidades que exigem alguma flexibilidade na aplicação das regras, sob pena de se tornarem inviáveis operações de reabilitação, conservação do património construído e regularização de situações consolidadas.

Por isso, a lei prevê exceções, tolerâncias e mecanismos de dispensa que permitem, em contextos específicos e mediante condições rigorosas, aceitar padrões ligeiramente inferiores aos estabelecidos como regra geral. A Portaria 304/2019 para edifícios licenciados antes de 1977, o artigo 102.º-A do RJUE para legalização de construções antigas, a Portaria 243/84 para construções clandestinas históricas, e o próprio princípio da proporcionalidade administrativa são instrumentos que visam equilibrar o rigor técnico com a realidade do edificado existente.

No entanto, estas flexibilidades não são automáticas, não são ilimitadas e não dispensam fundamentação técnica e jurídica sólida. Não basta invocar genericamente que "o pé-direito é quase conforme" ou que "não compromete a habitabilidade". É necessário demonstrar, de forma rigorosa, que se verificam os pressupostos legais para aplicação da exceção ou tolerância pretendida.

Para os proprietários, a mensagem é clara: não construa ou altere edifícios sem respeitar as normas técnicas em vigor. Se se confrontar com uma situação de pé-direito reduzido num imóvel que pretende legalizar ou reabilitar, procure aconselhamento técnico qualificado para avaliar se existem fundamentos legais para regularização ou se será necessário realizar obras de adequação.

Para os técnicos, a responsabilidade é ainda maior: as soluções que subscrevem devem ser não apenas tecnicamente adequadas, mas também juridicamente fundamentadas. Invocar flexibilidades sem verificar rigorosamente se os pressupostos estão reunidos pode conduzir ao indeferimento do pedido, à responsabilização profissional e a prejuízos para o dono da obra.

A legalização e reabilitação de edifícios com pé-direito reduzido é possível, mas exige conhecimento profundo da legislação aplicável, análise caso a caso e fundamentação técnico-jurídica rigorosa.


Tem um projeto de reabilitação ou legalização de um edifício com pé-direito reduzido e precisa de orientação técnica e jurídica especializada?

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