Mudança de Uso: de Habitação para Comércio – Procedimentos e requisitos legais
- Ana Carolina Santos

- 15 de out.
- 10 min de leitura
A transformação de um espaço habitacional em estabelecimento comercial é uma operação que suscita cada vez mais interesse em Portugal, seja por parte de proprietários que procuram rentabilizar imóveis, seja por empreendedores à procura de localizações estratégicas para os seus negócios. No entanto, esta mudança de utilização não é um processo simples nem automático, exigindo o cumprimento de procedimentos administrativos específicos e o respeito por condicionantes legais e técnicas rigorosas.
Este post explora em detalhe o enquadramento legal aplicável, os procedimentos a seguir junto da Câmara Municipal, as condicionantes técnicas a considerar e os aspetos práticos que deve conhecer antes de avançar com a alteração de uso de habitação para comércio em Portugal.

O que é uma Alteração de Utilização?
De acordo com o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), a alteração de utilização constitui uma operação urbanística que consiste na mudança do fim a que se destina um edifício ou fração autónoma. Quando falamos de mudar habitação para comércio, estamos perante uma alteração significativa que implica passar de um uso privado e residencial para um uso que envolve, regra geral, a receção de público e atividades comerciais ou de serviços.
Esta operação está sempre sujeita a controlo prévio por parte da Câmara Municipal, independentemente de haver ou não obras associadas.
Regime aplicável: Comunicação Prévia ou Licenciamento?
A alteração de uso de habitação para comércio pode seguir dois caminhos distintos, consoante haja ou não necessidade de realizar obras:
Comunicação Prévia com Prazo (quando não há obras sujeitas a controlo prévio):
Prazo de análise pela Câmara Municipal: 20 dias
O requerente apresenta a comunicação com todos os elementos necessários
A Câmara pode rejeitar a comunicação se verificar desconformidades
Licenciamento (quando são necessárias obras de construção, alteração ou ampliação):
Procedimento mais complexo e demorado
Obriga à apresentação de projetos de arquitetura e especialidades
Sujeito a prazos de apreciação que podem variar entre 120 e 200 dias úteis, consoante a dimensão da intervenção
Procedimentos Administrativos a seguir
1. Verificação Prévia da Viabilidade
Antes de avançar com qualquer pedido formal, é fundamental realizar uma consulta ao Plano Diretor Municipal (PDM) ou outros instrumentos de gestão territorial aplicáveis à zona onde se localiza o imóvel.
Aspetos a verificar:
Se a zona admite uso comercial ou misto (habitação e comércio)
Se existem restrições específicas quanto ao tipo de comércio permitido
Se há limitações em zonas residenciais consolidadas
Se incidem servidões administrativas ou restrições de utilidade pública
Esta verificação pode evitar investimentos desnecessários num projeto que, à partida, não será viável do ponto de vista urbanístico.
2. Contratação de Técnicos Habilitados
A mudança de uso exige, regra geral, o acompanhamento de arquitetos e, conforme o caso, engenheiros devidamente habilitados. Estes profissionais são responsáveis por:
Elaborar o projeto de alterações necessárias ao espaço
Emitir termos de responsabilidade pela conformidade do projeto com as normas legais e regulamentares aplicáveis
Assegurar a direção técnica das obras, quando aplicável
Garantir o cumprimento das normas de segurança, acessibilidades e salubridade
3. Instrução do Pedido na Câmara Municipal
O pedido de alteração de uso deve ser instruído com diversos elementos, cuja exigência varia consoante o município e a complexidade da operação:
Elementos base comuns:
Requerimento identificando o proprietário e o imóvel
Termo de responsabilidade do técnico responsável
Planta de localização do imóvel
Certidão da descrição e de inscrição predial
Comprovativo de pagamento das taxas municipais devidas
Elementos adicionais se houver obras:
Projeto de arquitetura
Projetos de especialidades (estruturas, águas, esgotos, AVAC, segurança contra incêndios, etc.)
Plano de acessibilidades
Memória descritiva e justificativa da intervenção
4. Consultas e Pareceres Externos
Consoante o tipo de atividade comercial prevista e a localização do imóvel, a Câmara Municipal pode ter de consultar outras entidades:
Autoridade de Saúde (para estabelecimentos de restauração, saúde, etc.)
Autoridades de proteção civil (segurança contra incêndios)
Entidades gestoras de infraestruturas (águas, eletricidade, gás)
Instituto da Conservação da Natureza (se em área protegida)
Direção Regional de Cultura (se em imóvel classificado ou em zona de proteção)
A necessidade de consultas externas pode prolongar significativamente os prazos de decisão.
5. Decisão e Emissão do Título
Após a análise do processo e verificação do cumprimento de todos os requisitos legais e regulamentares, a Câmara Municipal emite:
Comunicação de admissão (no caso de comunicação prévia)
Este título substitui a anterior autorização de utilização para habitação, passando o imóvel ou fração a estar legalmente afeto ao uso comercial.
Condicionantes Técnicas a observar
Normas de Acessibilidade
O Decreto-Lei n.º 163/2006 estabelece normas técnicas rigorosas em matéria de acessibilidades para pessoas com mobilidade condicionada. A adaptação de habitação a comércio deve garantir:
Acessos ao estabelecimento:
Entrada acessível desde a via pública, com largura mínima de 0,87 m
Ausência de degraus ou, quando inevitáveis, existência de rampa alternativa
Inclinação das rampas não superior a 6% (ou 8% em situações excecionais)
Zona de manobra para rotação de cadeira de rodas (1,50 m de diâmetro)
Instalações sanitárias acessíveis:
Pelo menos uma instalação sanitária deve ser acessível a pessoas com mobilidade condicionada
Dimensões mínimas que permitam a manobra de cadeira de rodas
Barras de apoio junto à sanita e ao lavatório
Altura adequada dos equipamentos sanitários
Estacionamento:
Se o estabelecimento dispuser de parque de estacionamento privativo, deve reservar lugares para pessoas com mobilidade condicionada (mínimo de 1 lugar)
Requisitos de Salubridade e Conforto
O Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) estabelece condições mínimas que os estabelecimentos comerciais devem cumprir:
Pé-direito mínimo:
3 metros nos espaços destinados a estabelecimentos comerciais
Este requisito pode ser um obstáculo em frações habitacionais com pé-direito de 2,40 m ou 2,70 m
Ventilação e iluminação natural:
Os compartimentos destinados a permanência de pessoas devem ter ventilação e iluminação natural adequadas
Área de vãos envidraçados não inferior a 1/10 da área do compartimento
Instalações sanitárias:
Devem ser independentes das zonas de atendimento ao público
Revestimentos impermeáveis e laváveis até 1,50 m de altura
Ventilação natural ou forçada adequada
Segurança Contra Incêndios
A legislação de Segurança Contra Incêndios em Edifícios (SCIE) aplica-se aos estabelecimentos comerciais e pode exigir:
Sistemas de deteção e alarme de incêndios
Extintores e outros meios de primeira intervenção
Iluminação de emergência
Sinalização de segurança
Vias de evacuação adequadas com larguras mínimas
Resistência ao fogo de elementos estruturais e de compartimentação
A classificação do risco do estabelecimento (1.ª a 4.ª categoria) determina a exigência das medidas de segurança aplicáveis.
Isolamento Acústico
O Regulamento Geral do Ruído e normas específicas de isolamento acústico podem obrigar a:
Isolamento acústico adequado entre o espaço comercial e frações habitacionais adjacentes ou sobrejacentes
Limitação de atividades ruidosas em zonas residenciais
Cumprimento de valores limite de emissão sonora para o exterior
Este aspeto é particularmente sensível quando a mudança de uso se opera em edifícios de habitação coletiva.

Propriedade Horizontal: Autorizações necessárias
Alteração ao Título Constitutivo
Quando a fração se situa em edifício em regime de propriedade horizontal, a mudança de uso de habitação para comércio implica a alteração do título constitutivo do condomínio.
Esta alteração deve ser formalizada através de:
Escritura pública, ou
Documento particular autenticado
E exige o registo predial da alteração.
Deliberação da Assembleia de Condóminos
Ao contrário do que sucede na mudança de comércio para habitação (facilitada pelo Decreto-Lei n.º 10/2024), a alteração de habitação para comércio continua a exigir, na generalidade dos casos, autorização da assembleia de condóminos.
A deliberação deve ser tomada por maioria qualificada ou, em alguns casos, unanimidade, consoante o que estiver previsto no título constitutivo ou regulamento interno do condomínio.
Fundamentos para recusa pelos condóminos:
Incompatibilidade da atividade comercial com o caráter residencial do edifício
Risco de perturbação do sossego e segurança dos moradores
Desvalorização das restantes frações
Aumento de encargos comuns sem contrapartida
Se a assembleia de condóminos recusar a autorização, o proprietário pode não conseguir avançar com a mudança de uso, mesmo que a Câmara Municipal a admita do ponto de vista urbanístico.
Obras em partes comuns
Se a adaptação do espaço exigir obras que afetem partes comuns do edifício (fachadas, estrutura, redes de infraestruturas comuns), será sempre necessária autorização específica da assembleia de condóminos para essas intervenções, independentemente da mudança de uso.
Licenciamentos Setoriais específicos
Para além do controlo urbanístico pela Câmara Municipal, determinados tipos de comércio exigem licenças ou autorizações setoriais específicas junto de outras entidades administrativas:
Estabelecimentos de Restauração e Bebidas
Autorização de funcionamento junto da Câmara Municipal (após parecer da autoridade de saúde)
Registo na plataforma Balcão do Empreendedor
Cumprimento de normas de higiene e segurança alimentar
Estabelecimentos de Saúde
Licenciamento pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS)
Autorização de funcionamento pela Direção-Geral da Saúde (DGS)
Estabelecimentos de Ensino
Autorização de funcionamento pela Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE)
Comércio Retalhista de Alimentação e Bebidas
Registo obrigatório na Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE)
Cumprimento de normas HACCP
Atividades Ruidosas ou Poluentes
Podem exigir licenças ambientais específicas
Avaliação de impacte ambiental em casos excecionais
A falta de obtenção destes licenciamentos setoriais, mesmo que a mudança de uso tenha sido autorizada pela Câmara, impede o legal funcionamento do estabelecimento.
Fiscalização e consequências do incumprimento
Dever de Fiscalização Municipal
A Câmara Municipal tem o dever de fiscalizar se os edifícios e suas frações estão a ser utilizados de acordo com a respetiva licença ou autorização de utilização.
A utilização de uma fração para comércio sem a necessária autorização de alteração de uso constitui:
Contraordenação, punível com coimas entre 250€ e 3.740,98€ (pessoas singulares) ou entre 500€ e 44.891,81€ (pessoas coletivas)
Fundamento para ordem de cessação de utilização pelo Presidente da Câmara
Possibilidade de despejo administrativo, caso a ordem não seja cumprida
Caducidade do Dever de Fiscalização
O dever de fiscalização da Câmara Municipal caduca 10 anos após a data de emissão do título da comunicação prévia ou licença.
No entanto, a utilização indevida não deixa de ser ilegal e pode ser invocada por terceiros (nomeadamente vizinhos ou outros condóminos) para fundamentar ações judiciais de tutela de direitos.
Responsabilidade Civil
O proprietário que utilize indevidamente uma fração para fins comerciais pode incorrer em responsabilidade civil perante:
O condomínio (por violação das regras da propriedade horizontal)
Vizinhos (por perturbação do sossego, danos materiais, desvalorização imobiliária)
Terceiros (por danos decorrentes de atividades não autorizadas)
Aspetos Fiscais e Registais
Atualização da Matriz Predial
A mudança de uso de habitação para comércio deve ser comunicada à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para efeitos de atualização da matriz predial.
Este procedimento é essencial porque:
Altera a classificação fiscal do imóvel
Pode implicar a reavaliação do valor patrimonial tributário
Influencia o montante de IMI e de IMT em futuras transmissões
Registo Predial da Alteração
A alteração de utilização deve ser inscrita no registo predial, o que exige:
Certidão emitida pela Câmara Municipal comprovativa da autorização da mudança de uso
Escritura de alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal (quando aplicável)
Sem o devido registo predial, a mudança de uso não produz efeitos perante terceiros.
Implicações em IMI e IMT
A alteração de uso pode ter consequências fiscais:
IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis):
Imóveis para comércio podem ter taxa de IMI diferente da aplicável a habitação
Dependendo do município, a taxa pode ser superior
IMT (Imposto Municipal sobre Transmissões):
Em futuras transmissões, o IMT aplicável será o correspondente a imóvel comercial
Perdem-se eventuais benefícios fiscais associados à habitação
Prazos e custos do procedimento
Prazos orientadores
Os prazos para conclusão do procedimento de mudança de uso variam significativamente consoante a sua complexidade:
Comunicação prévia sem obras:
Prazo de análise pela Câmara: 20 dias
Possibilidade de rejeição fundamentada nesse prazo
Se não houver rejeição, a operação pode prosseguir
Licenciamento com obras:
Saneamento e apreciação liminar: 10 a 15 dias
Consultas a entidades externas: até 60 dias (podendo ser prorrogado)
Apreciação técnica municipal: 120 a 200 dias úteis, consoante a dimensão da intervenção
Prazo total: pode facilmente ultrapassar 6 a 12 meses
Custos envolvidos
A mudança de uso de habitação para comércio implica diversos custos:
Taxas municipais:
Taxa de apreciação do pedido de alteração de uso
Taxa pela emissão de novo alvará de utilização
Taxas de ocupação da via pública (se aplicável durante obras)
Valores variáveis consoante o município e a dimensão da operação
Honorários de técnicos:
Arquiteto: elaboração de projeto e direção de obra
Engenheiros: projetos de especialidades
Coordenador de segurança em obra (quando aplicável)
Valores dependem da complexidade do projeto
Custos de obra:
Adaptações estruturais e funcionais necessárias
Cumprimento de normas de acessibilidade
Sistemas de segurança contra incêndios
Isolamentos acústicos
Podem variar entre alguns milhares a dezenas de milhares de euros
Outros custos:
Escritura de alteração do título constitutivo
Registo predial
Licenças setoriais específicas
É fundamental elaborar um plano financeiro realista antes de avançar, sob pena de o projeto se tornar inviável economicamente.
Conselhos práticos
Para assegurar que o processo de mudança de uso decorre sem percalços, tenha em atenção os seguintes aspetos:
Antes de comprar ou arrendar um imóvel com intenção de o afetar a comércio:
Verifique no PDM se a zona admite uso comercial
Consulte o título constitutivo do condomínio sobre restrições de uso
Avalie a viabilidade técnica da adaptação (pé-direito, acessos, ventilação)
Solicite informação prévia à Câmara Municipal sobre a viabilidade da operação
Durante o processo:
Contrate sempre técnicos habilitados e experientes
Mantenha contacto regular com os serviços municipais para acompanhamento do processo
Assegure a obtenção de todas as autorizações necessárias (condomínio, entidades setoriais)
Documente todas as fases do procedimento
Após a conclusão:
Solicite a emissão do novo alvará de utilização
Proceda ao registo predial e à comunicação à AT
Informe o condomínio da conclusão da operação
Mantenha toda a documentação técnica arquivada (pode ser solicitada em fiscalizações)
Nunca inicie a atividade comercial antes de:
Obter a autorização de alteração de uso da Câmara Municipal
Dispor de todas as licenças setoriais aplicáveis
Ter a autorização do condomínio (quando necessária)
Registar a alteração no registo predial
Para considerar
A mudança de uso de habitação para comércio não é apenas uma questão administrativa ou burocrática — é uma intervenção que pode transformar profundamente a dinâmica de um edifício, de uma rua ou de um bairro. Por isso, a legislação prevê mecanismos de controlo que visam equilibrar a liberdade de iniciativa económica dos proprietários com a proteção do ambiente urbano, da qualidade de vida dos moradores e do interesse público.
Conhecer os procedimentos, respeitar os prazos e cumprir as condicionantes técnicas e legais não é apenas uma obrigação — é uma garantia de que o seu projeto terá viabilidade, segurança jurídica e aceitação por parte da comunidade envolvente.
A complexidade deste processo justifica plenamente o recurso a aconselhamento profissional especializado, tanto na vertente arquitetónica e de engenharia como na vertente jurídica e administrativa. Um projeto bem planeado, devidamente instruído e tecnicamente sólido é um investimento que se revelará compensador, evitando custos imprevistos, atrasos e, sobretudo, conflitos legais que podem comprometer toda a operação. Lembre-se: a legalidade é a base da sustentabilidade de qualquer atividade comercial. Não vale a pena correr riscos.
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